sexta-feira, fevereiro 29, 2008

para viver um grande amor

para viver um grande amor, preciso é muita concentração e muito siso, muita seriedade e pouco riso — para viver um grande amor.
para viver um grande amor, mister é ser um homem de uma só mulher; pois ser de muitas, poxa! é de colher... — não tem nenhum valor.
para viver um grande amor, primeiro é preciso sagrar-se cavalheiro e ser de sua dama por inteiro — seja lá como for. há que fazer do corpo uma morada onde clausure-se a mulher amada e postar-se de fora com uma espada — para viver um grande amor.
para viver um grande amor, vos digo, é preciso atenção como o "velho amigo", que porque é só vos quer sempre consigo para iludir o grande amor. é preciso muitíssimo cuidado com quem quer que não esteja apaixonado, pois quem não está, está sempre preparado pra chatear o grande amor.
para viver um amor, na realidade, há que compenetrar-se da verdade de que não existe amor sem fidelidade — para viver um grande amor. pois quem trai seu amor por vanidade é um desconhecedor da liberdade, dessa imensa, indizível liberdade que traz um só amor.
para viver um grande amor, il faut além de fiel, ser bem conhecedor de arte culinária e de judô — para viver um grande amor.
para viver um grande amor perfeito, não basta ser apenas bom sujeito; é preciso também ter muito peito — peito de remador. é preciso olhar sempre a bem-amada como a sua primeira namorada e sua viúva também, amortalhada no seu finado amor. é muito necessário ter em vista um crédito de rosas no florista — muito mais, muito mais que na modista! — para aprazer ao grande amor. pois do que o grande amor quer saber mesmo, é de amor, é de amor, de amor a esmo; depois, um tutuzinho com torresmo conta ponto a favor...
conta ponto saber fazer coisinhas: ovos mexidos, camarões, sopinhas, molhos, strogonoffs — comidinhas para depois do amor. e o que há de melhor que ir pra cozinha e preparar com amor uma galinha com uma rica e gostosa farofinha, para o seu grande amor? para viver um grande amor é muito, muito importante viver sempre junto e até ser, se possível, um só defunto — pra não morrer de dor. é preciso um cuidado permanente não só com o corpo mas também com a mente, pois qualquer "baixo" seu, a amada sente — e esfria um pouco o amor. há que ser bem cortês sem cortesia; doce e conciliador sem covardia; saber ganhar dinheiro com poesia — para viver um grande amor.é preciso saber tomar uísque (com o mau bebedor nunca se arrisque!) e ser impermeável ao diz-que-diz-que — que não quer nada com o amor. mas tudo isso não adianta nada, se nesta selva oscura e desvairada não se souber achar a bem-amada — para viver um grande amor.

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...poetinha...

para matar um grande amor...

muito se louvou a arte do encontro, mas poucos louvaram a arte do adeus. no entanto, não há gesto tão profundamente humano quanto uma despedida.
é aquele momento em que renunciamos não apenas à pessoa amada, mas a nós mesmos, ao mundo, ao universo inteiro. o amor relativiza; a renúncia absolutiza.
e não há sentimento mais absoluto do que a solidão em que somos lançados após o derradeiro abraço, o último e desesperado entrelaçar de mãos. arrisco mesmo a dizer: só os amores verdadeiros se acabam. os que sobrevivem, incrustados no hábito de se amar, podem durar uma vida inteira e podem até ser chamados de amor mas nunca foram ou serão um amor verdadeiro. falta-lhes exatamente o dom da finitude, abrupta e intempestiva.
qualidade só encontrável nos amores que infundem medo e temor de destruição.
não se vive o amor; sofre-se o amor. sofre-se a ansiedade de não poder retê-lo, porque nossas cordas afetivas são muito frágeis para mantê-lo retido e domesticado como um animal de estimação. ele é xucro e bravio e nos despedaça a cada embate e por fim se extingue e nos extingue com ele. aponta numa única direção: o rompimento. pois só conseguiremos suportá-lo se ocultarmos de nossos sentidos o objeto dessa desvairada paixão. mas não se pense que esse é um gesto de covardia. o grande amor exige isso. o rompimento é sua parte complementar. uma maneira astuciosa de suspender a tragédia, ditada pelo instinto de sobrevivência de cada um dos amantes. morrer um pouco para se continuar vivendo. e poder usufruir daquele momento mágico, embebido de ternura, em que a voz falseia, as mãos se abandonam e cada qual vê o outro se afastar como se através de uma cortina líquida ou de um vitral embaçado.
há todo um imaginário sobre os adeuses e as separações, construído pela literatura e pelo cinema.
o cenário pode ser uma estação de trem, um aeroporto (remember casablanca), um entroncamento rodoviário. pode ser uma praça ou uma praia deserta. falésias ou ruínas de uma cidade perdida. pode estar garoando ou nevando, mas vento é imprescindível.
as nuvens devem revolutear no horizonte, como a sugerir a volubilidade do destino. os cabelos da amada, longos ou curtos mas escuros, fustigam de leve seus lábios entreabertos. há sutis crispações, um discreto arfar de seios.
e os olhos, ah!, os olhos... a visão é o último e o mais frágil dos sentidos que ainda nos une ao que acabamos de perder. uma grande dor, uma solidão cósmica, um imenso sentimento de desterro. que se curam algum tempo depois com um amor vulgar, desses feitos para durar uma vida inteira...

jamil Snege nasceu em curitiba, em 1939. graduou-se em sociologia e política pela pontifícia universidade católica do paraná. escritor e publicitário, dividia seu tempo entre os livros e sua agência publicitária. publicou crônicas, quinzenalmente, no jornal gazeta do povo. seus principais
livros são “o jardim, a tempestade” (minicontos, 1989), “como eu se fiz por si mesmo” (memórias, 1994) e “os verões da grande leitoa branca” (contos, 2000). morreu em curitiba, em 2003.